sexta-feira, 18 de abril de 2008

Tibete: investigação sobre uma fotografia manipulada

Com base numa fotografia que nada tem a ver com os recentes acontecimentos no Tibete, pretende manipular a opinião pública. E quando se recorre à mentira são muitas as liberdades que são retiradas.

Michel Collon* - 17.04.08

Olhem com atenção a fotografia “Soldados chineses disfarçam-se de monges.” [ver http://flickr.com/photos/macy_miao/2370855959/in/pool-tibetphot].

Provavelmente já a terão recebido ou irão receber em breve. Tem tido intensa circulação na Net, acompanhada do seguinte comentário: “Londres – 20 de Março – A GCHQ, agência governamental de comunicações que vigia electronicamente metade do mundo a partir do espaço, confirmou a acusação do Dalai Lama, segundo o qual membros do Exército Popular de Libertação chinês, disfarçados de monges, desencadearam os desacatos que resultaram na morte ou ferimento de milhares de tibetanos…”

Pretende-se que esta fotografia prova essa acusação, e por isso tem gerado uma vasta indignação. Dito isto, olhem com atenção a fotografia, e vamos jogar ao jogo de detectar sete erros…

São estes os sete erros:

1-Alguma vez viram uma “imagem de satélite” tirada de um tal ângulo? Fisicamente, é impossível. Desse ângulo não se veria senão um nevoeiro azulado (quando se viaja de avião não pode ver-se senão para baixo, não a grande distância.)

2-Somos informados de que os soldados se disfarçam de monges para intervirem como agentes provocadores. Seriam tão estúpidos que realizassem uma tal operação secreta em plena via pública?

3-Dizem-nos que a fotografia é recente, imediatamente anterior aos acontecimentos denunciados. Que prova existe disso?

4-Pedi a opinião de um amigo que conhece o Tibete. Diz-me que esta fotografia não poderia ter sido tirada a 14 de Março, sob um sol primaveril, uma vez que este ano a primavera apenas se fez sentir no Tibete depois de 21 de Março.

5-Informou-me também que as cores dos táxis-bicicleta de Lassa mudaram depois de 2005.

6-Informou-me também que os uniformes fotografados já não são usados há bastante tempo.

7-Verificado isto tudo, tornou-se necessária uma pequena investigação, que conduziu à descoberta de uma versão bem diferente…

Donde vem então a fotografia?

Na verdade, a fotografia data de 2003. Os monges tinham recusado participar como figurantes na rodagem de um filme. Em vista disso houve a necessidade de recorrer a militares, que são vistos a recolher os seus trajes de figurante, o que parece constituir uma prática corrente naqueles sítios. Em qualquer caso, a cena não tem nada a ver com as recentes imagens na televisão de monges desencadeando a violência e assaltando lojas em Lassa.

O que é certo é que esta outra versão apontava para uma manipulação tão grosseira que se tornava necessária uma confirmação adicional. Pois bem, qualquer um de nós pode encontrar essa confirmação…no próprio site que difunde esta fotografia “acusatória”:http://buddhism.kalachakranet.org/chinese-orchestrating-riots-tibet.htm

A fotografia figura aí com a seguinte legenda: “Esta ‘acção táctica’ não é inédita por parte do governo Chinês, como pode constatar-se na contracapa do relatório de 2003 do Tibetan Centre for Human Rights and Democracy. Esta fotografia parece ter sido tirada quando alguns monges se recusaram a participar num filme, de modo que o seu papel foi desempenhado por soldados vestidos de monge.”

De acordo com um dos nossos contactos, a fotografia terá sido tirada na altura da rodagem de um telefilme (em 25 episódios), em 2003-2004, baseado na obra “Quando assentou a poeira”, um romance de Alai, autor tibetano nascido em 1959 na zona ocidental do Tibete. Este romance recebeu o Prémio de Maodun (um dos mais importantes prémios literários na China) em 2000.

Questionado acerca desta manipulação, o responsável do site respondeu que associara a fotografia ao texto acusatório dos chineses “com a finalidade de mostrar o género de artimanhas que os chineses utilizaram no decurso dos recentes motins”. Fica ao cuidado de cada um avaliar esta deontologia jornalística.

Logo em seguida, todo o género de grupos trataram pura e simplesmente de suprimir o comentário, de modo a fazer crer que a fotografia era recente e de que se tratava de uma provocação do exército chinês. Depois disso, a fotografia deu a volta ao mundo…Quanto a “imagens de satélite”, já existem antecedentes.

1-Não é a primeira vez que pretendem convencer-nos através de imagens de satélite. Em 1990, os EUA afirmaram dispor de imagens (que nunca divulgaram) demonstrando que Saddam Hussein se preparava para invadir a Arábia Saudita. Este truque diabolizante tem desempenhado um importante papel na manipulação da opinião pública. No meu livro Attention, médias! faço a análise desta médiafraude (pag. 21).

2-Em 2003 os EUA difundiram imagens de satélite que “provavam” que o Iraque dispunha de armas de destruição massiça.

3-Recentemente, reincidiram, agora contra o Irão (silenciando o facto de que Israel dispõe de 200 armas nucleares ilegais.

Pode uma imagem mentir?

É altura de lembrar que pode mentir-se com imagens. Já para não falar das técnicas gráficas hoje disponíveis, grandes cineastas, como Chris Marker, demonstraram de forma brilhante que é possível fazer seja o que for a uma imagem e fazer com que ela permaneça credível. Efectivamente, uma imagem, por si própria, não nos informa:

1-De quando e em que lugar foi tirada.

2-O que é que mostra realmente.

3-O que é que oculta (ao lado, antes, depois…)

Todos nós já nos deixámos enganar em alguma ocasião por imagens destas. É certo que cabe a cada um formar a sua opinião acerca do Tibete, procurando verificar ambas as versões, procurando estudar os interesses em jogo de ambos os lados. Mas, em qualquer caso, todos temos direito a uma informação não manipulada. Por isso, sugiro às pessoas que têm difundido esta imagem que difundam também esta rectificação.

*Escritor e professor de jornalismo

Tradução Pedro Silva

Retirado de o diario

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